terça-feira, novembro 23, 2004

A Luz

O que ele procurava. Quando percorria todos os passeios da cidade, ser sequer olhar para o brilho das montras, só o aroma das castanhas a assar lhe abrandava o passo às vezes. O que é que ele procurava quando percebia que, de repente, já tinha atravessado a cidade inteira, como que cego, como que enfeitiçado, como que se fizesse sentido. Por ruas que nem conhecia, desafiando a má fama de zonas agrestes e outras só desconhecidas e tão novas ao seu olhar como uma folha em branco. O que procurava quando chegava da rua exausto, fintando o frio cortante de Novembro, e desatava num compulsivo zapping, em frente à televisão que vagamente debitava canais que ele nem chegava a ver, de facto. O que quereria ele ver, mesmo sem ter capacidade para olhar, porque para olhar é preciso parar e respirar por um instante?
O que procurava ele. Nas músicas que o rádio tocava, nas páginas que desfolhava á toa, em livrarias secretas de bairros escondidos, o que procurava ele quando se deixava estar, no fim das sessões de cinema, sozinho na sala, a um canto, com as letras a correr á sua frente no fundo negro do écran. Os dias todos entre aquele escuro quase seguro, quase aconchego e a segurança ampla das ruas cheias de anónimos. Zangado e impaciente, pedia um café, mas se demorava muito deixava o dinheiro na mesa e fugia de novo para a procura desvairada e insana.
O que procurava ele, numa Lisboa agreste, onde só a luz, meu Deus que luz! o não maltratava, antes envolvia, como uma carícia de mãe, um regaço?
O que procurava. Ele.
Com sorte...ela, algures. Ele procurava-a. Como se a vida fosse uma lotaria e as ruas, os cinemas, as músicas do rádio, os livros que tocamos e não lemos, os cafés que pedimos e não tomamos...se tudo fossem cautelas, à espera que alguêm dê à roda, e se faça luz. E da luz se faça paz.

2 Comments:

At 8:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

lindíssimo..
só dá vontade de chegar de mansinho ao pé dele e dizer: vai ficar tudo bem. Este abraço é indutor da paz. sossega.
um beijo
vK.

 
At 10:07 da tarde, Blogger Bruno Martins said...

Também não sei se hei-de procurá-la por Lisboa inteira, pelo meio do cheiro das castanhas, pelo frio de Novembro...ou se devo ficar «parado» à espera que ela me traga um cartucho com meia dúzia e me diga: «toma. vamos partilhá-las?». Rais parta pá...

 

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